Em Praga, com Franz Kafka e companhia
Longe da cidade, que após a queda do regime soviético rapidamente se tornou um dos principais destinos turísticos europeus, há uma Praga misteriosa, labiríntica, que guarda segredos que precisam de tempo e interesse para serem revelados. Muitos se escondem na obra genial de Kafka, que a cada dia se torna mais necessária diante das relações impessoais que marcam nossa sociedade atual, com neuroses escapando como fantasmas bizarros nas ruas e nos telejornais.
Dentro do Museu
Em Praga, o Museu Kafka consegue, com rara felicidade, traduzir num espaço físico as impressões que nos acompanham ao tomar contato com a obra do escritor. Mais do que um museu convencional, o espaço propõe constantemente trocas com público. Não se trata de apenas contemplar, observar, mas percorrer espaços, cômodos, enquanto se é invadido por ruídos, instalações sonoras a complementar as pérolas do acervo, como parte da correspondência do autor – as cartas ao pai e a eterna noiva Felice Bauer são devastadoras. Assim como a estranha escultura que homenageia o autor, nas proximidades da Sinagoga Espanhola no bairro judeu, o universo kafkaniano, mesmo nas homenagens de sua cidade natal, nos coloca numa situação de estranhamento diante de nossa própria experiência.
Kafka nas livrarias
As livrarias do país trazem algumas obras que tratam da cidade e do autor. A obra de Kafka já está em domínio público, o que facilita muito a vida de quem tem boas relações com o idioma alemão. Aos demais mortais há as traduções. Por sorte o Brasil está muito bem representado no quesito. A coleção comandada pelo crítico Modesto Carone para a editora Companhia das Letras, é, sem dúvida, um dos melhores trabalhos já feitos no país com a obra de um autor da envergadura de Kafka. Sorte nossa que podemos contar com a cuidadosa tradução e a clareza crítica de Carone a iluminar nossa leitura.
Versões de Praga
O entroncamento das biografias de autor e cidade é o mote do recém-lançado “Franz Kafka e Praga”, do austríaco Harald Salfellner (Tinta Negra, R$ 43,00). Harald procura situar o leitor na Praga do começo do século XX, partindo da trajetória do autor de “O castelo”. Didático, sem ser chato, o autor traça um rico panorama de uma das cidades mais interessantes daquele período, a partir de passagens da vida e da obra de Kafka. Ainda nesse ano, a Record lança “O cemitério de Praga”, de Umberto Eco, em que o autor de “O nome da rosa” retorna sua investigação detetivesca e erudita sobre mistérios de época, desta vez ambientada no impressionante Cemitério Judaico de Praga. E, antes que a coluna se finde, não há como tratar de Praga, sem lembrar o delicioso “Utz” (Cia das Letras, R$ 36,50), de Bruce Chatwin. A história de um ávido colecionador de porcelanas de Meissen – tratadas como portadoras de segredos milenares –, abrigadas em seu apartamento no coração da cidade.
Moacyr Scliar
Provavelmente junto a Luis Fernando Veríssimo e Carlos Heitor Cony, Moacyr Scliar tenha sido o escritor profissional mais consistente das últimas décadas no país. O termo profissional aqui serve apenas nomear o autor capaz de se dedicar com talento e profissionalismo tanto a projetos pessoais, quanto a obras de encomenda. Scliar, grande admirador de Kafka, produziu muito e bem. Fará falta, acima de tudo, por ser um dos poucos autores no país que ajudaram a desmistificar a atividade. Ao não tratá-la como algo destinado a seres ungidos por alguma divindade, lega a nossos autores e leitores uma obra construída com disciplina e esforço concentrado.
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